Caso Márcia Lucena

Vida roubada

Márcia de Figueiredo Lucena Lira, nasceu em João Pessoa, na Paraíba. Ainda na infância, mudou-se para a cidade de Conde, no litoral sul do Estado, onde reside atualmente.

 

Feminista, professora de alfabetização e de artes, com licenciatura em educação artística e mestrado em Serviço Social (UFPB), fez pós-graduação em Liderança e Gestão, no Centro de Liderança Pública/SP. Foi coordenadora do Projovem Urbano de 2005 a 2010; Secretária de Estado da Educação de 2011 a 2014; presidenta da Fundação Cultural do Estado de 2015 a 2016 e prefeita do município de Conde, de 2017 a 2020.

 

Conde, com sua bela paisagem litorânea, localizada a poucos quilômetros de João Pessoa, sempre atraiu muita gente, entre turistas e moradores eventuais, proprietários de casas de veraneio. A população nativa, em sua maioria, é composta de pescadores e pessoas com atividades informais relacionadas ao turismo.

 

Em sua gestão como prefeita, proprietários de lotes, no caso, dez mil lotes, foram chamados a pagar IPTU que, até então, não era pago. Uma lei que isentava empresas do pagamento de qualquer imposto, por 25 anos, foi revogada. No mesmo período, foi aprovada a lei de uso e ocupação do solo, estabelecendo-se regras para a construção e foi criada a Secretaria Municipal de Meio Ambiente.

 

A gestão de Márcia como prefeita foi marcada por participação popular. O programa “Olá Comunidade” foi criado para dar voz à população. O projeto “Mutirão da Vizinhança” foi desenvolvido para que a própria comunidade se mobilizasse para garantir a melhoria dos espaços públicos, desde o planejamento do projeto até a sua implantação. Dentre inúmeros outros, o programa “Chão de Direito” legalizou a posse dos terrenos e casas dos moradores de baixa renda.

“Nós fizemos muita coisa que sacudiu o povo que estava amordaçado, calado, [trazendo] de volta para a vida e isso, para as pessoas que querem continuar pensando que têm controle de tudo, é terrivelmente assombroso”. Disse Márcia.

Selecionada para integrar a Operação Calvário

Às cinco horas da manhã do dia 17 de dezembro de 2019, Márcia Lucena teve sua casa invadida por policiais federais que fizeram busca e apreensão e, sem qualquer explicação, a levaram presa. No mesmo dia, mais tarde, soube que a polícia federal havia ido à casa de seu filho, derrubado a porta, e feito busca e apreensão no apartamento do jovem que acordou assustado com sete policiais armados com metralhadoras em volta de sua cama.

 

A dita operação foi conduzida pelo Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado da Paraíba.

 

No momento da prisão, Márcia encontrava-se no exercício do mandato de prefeita da cidade de Conde. Anteriormente, nos anos de 2011 a 2014, havia exercido o cargo de Secretária de Estado da Educação, na gestão do governador Ricardo Coutinho, na Paraíba.

 

Tanto a gestão de Ricardo Coutinho, entre os anos de 2011 e 2018, quanto a de Márcia Lucena, como prefeita, foram pautadas pela participação popular. Diversas políticas de inclusão social foram implementadas, principalmente nas áreas da educação e da saúde. Assim, ambas as gestões contrariaram interesses da oligarquia paraibana.

 

O alvo do lawfare no caso da Calvário era o governador Ricardo Coutinho. Ele era o inimigo principal. No entanto, para caracterizar que havia uma organização criminosa, era necessário incluir outros inimigos para completar e dar verossimilhança à história. Assim Márcia, foi selecionada, escolhida a dedo, pelo Gaeco.

 

Depois de permanecer cinco dias na prisão, foi solta por força de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas devendo cumprir uma série de medidas restritivas impostas pela Justiça da Paraíba, dentre elas, usar tornozeleira eletrônica.

 

Mais de dois anos após ter sido levada da sua casa para a prisão, Márcia nunca foi ouvida por um juiz. Por todo esse tempo, sua defesa não foi lida por um juiz!

O calvário de Márcia Lucena – os processos

Seu nome foi envolvido em cinco processos, incluindo-se acusações de participar de organização criminosa, improbidade administrativa, fraude a licitação, corrupção, lavagem de dinheiro, peculato, tudo no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.

 

Uma Ação Civil Pública (ACP), na Vara Única de Conde, também foi instaurada, fundamentada em uma busca e apreensão ilegal de medicamentos da Secretaria Municipal de Saúde. Em um dos processos chegaram a incluir o marido de Márcia Lucena.

 

A denúncia do MP contra 35 pessoas acusa Márcia de pertencer a uma organização criminosa que desviava recursos públicos de contratos mantidos com Organizações Sociais (O.S.). Os recursos teriam servido para pagar financiamento de campanha política do ex-governador Ricardo Coutinho. Segundo a denúncia, Márcia teria assinado contratos com O.S., quando ocupava o cargo de Secretária da Educação do Governo da Paraíba, no ano de 2017.

 

No entanto, no ano de 2017, Márcia não ocupava cargo algum no governo da Paraíba. Naquele ano, era prefeita da cidade do Conde. Tanto no período de 2017 a 2020, quando foi prefeita, quanto no período de 2011 a 2014, quando foi secretária de educação do governo da Paraíba, Márcia Lucena, nunca assinou qualquer contrato com Organização Social (O.S.).

 

A denúncia apresentada pelo MP se baseou em delação premiada, sem provas dos fatos, e não resiste a uma leitura do Diário Oficial do Estado.

 

O tema ‘medicamentos’ foi recorrente nas denúncias do MP. Em uma delas, foi acusada por ter comprado remédios sem licitação. Ocorre que os medicamentos comprados vinham de um laboratório estatal e, no caso de compras feitas entre empresas públicas, a lei dispensa a licitação. Diversos outros municípios do Estado da Paraíba adotaram o mesmo procedimento, sem que os prefeitos fossem denunciados.

 

Uma busca e apreensão de medicamentos, sem autorização judicial, ilegal, portanto, determinada pelo MP, após a invasão da farmácia do município por um vereador da oposição, levou a uma Ação Civil Pública de improbidade administrativa. Tal ação pode cassar os direitos políticos da Márcia por um período de três a cinco anos.

Transformando sofrimento em luta

Ao longo de dois anos, Márcia foi submetida a uma cruel pena restritiva de liberdade, a ponto de impor a proibição de sair dos limites da cobertura do telhado da sua casa. Monitorada por meio de uma tornozeleira que usou por 508 dias, não tinha direito de visitar o pai doente, na casa vizinha, ou ir ao médico na capital, João Pessoa, distante 20 km da cidade de Conde.

 

Nesse tempo, seu pai faleceu, sem que nenhum juiz tivesse lido sua defesa. A tornozeleira foi retirada, mas, até abril de 2022, para fazer qualquer deslocamento para fora da cidade, deveria pedir autorização ao juiz, que remetia o pedido para o Ministério Público analisar e, depois de um tempo, que poderia ser dias, voltava para o juiz decidir.

 

Sem emprego, sem renda e com seus bens bloqueados, Márcia segue lutando por justiça:

“A gente vê que toda a luta da gente, mesmo que esteja marcada pela vergonha de ser julgada antes de ser ré, mesmo que esteja marcada pela vergonha de ser exposta diariamente como uma bandida, sem ser uma bandida, vale a pena lutar pelas pessoas. Eu não me arrependo em nenhum momento e é por não me arrepender, transformar sofrimento em luta e em consciência que eu estou aqui”. Márcia Lucena

Dimensões do lawfare no caso Márcia Lucena

Geográfica – São cinco os processos criminais contra Márcia Lucena.

 

Quatro processos foram levados ao Tribunal de Justiça do Estado. Observa-se que um desses processos trata de fatos relacionados à seara eleitoral e, portanto, o tribunal competente para julgar, seria o tribunal eleitoral.

 

Dois processos descrevem o mesmo fato de outra forma, o que é vedado pelo ordenamento jurídico. Esses dois processos estão no TJPB.

 

Em dois processos, o desembargador declinou a competência para distribuição ao primeiro grau, por Márcia não ser mais prefeita. Esses dois processos são conexos a outro processo e, em sendo conexos, não é razoável tramitarem separadamente.

 

Outro processo criminal, relativo à compra de livros, foi instaurado pelo MP, no TJPB, sem que fosse verificada, previamente, eventual falha na contratação para aquisição do material didático. Ação que poderia ter sido feita num processo administrativo e, não, criminal.

 

O quinto processo é uma ação pública de improbidade administrativa, instaurada na Vara Única de Conde, contra duas pessoas que fizeram parte da gestão da prefeita Márcia, além dela mesma. Esse processo se baseia em busca e apreensão ilegal determinada pelo MP, sem autorização judicial.

 

Fica evidente que a Justiça Criminal foi eleita com o objetivo de dificultar a defesa e de buscar penas mais graves.

 

Leis – É fácil verificar a judicialização da política na aplicação das leis ao caso, pois práticas corriqueiras de contratação, lícitas e vantajosas para a administração foram transformadas em crime. As mesmas práticas adotadas por diversos municípios se transformaram em crime apenas para a prefeitura de Conde, para uma única prefeita. Sobre o mesmo fato foi apresentada mais de uma denúncia, o que é vedado por lei.

 

Para entender o que é a distorção das leis para a criminalização da política, o que é promover a injustiça, com a palavra o Ministério Público:

“A liderança de RICARDO COUTINHO no empreendimento criminoso é consectário natural do posto por ele ocupado, no Governo do Estado (período de 2011 a 2018), do prestígio político por ele angariado, no cenário regional, e dos atributos de sua personalidade: forte e permeada por atos de concentração de poder. Esses predicados, na verdade, possuem raízes históricas, pois precedem sua atuação no governo local (foi ele prefeito da capital) e foram capazes de influenciar, inclusive, na formação da gestão subsequente. Todos sabem que foi este réu o principal pivô da eleição do atual governador e que capitaneou a manutenção, no Poder Executivo do seu staff de Secretários no centro das decisões políticas” (fls. 64-65).

Externalidades – O caso foi amplamente divulgado nas imprensas local e nacional, com vazamento de dados e de informações, além de declarações públicas feitas por membros do MP, promovendo-se, com isso, um grande espetáculo midiático. Também foram feitas publicações nas páginas oficiais dos órgãos do sistema judicial e em redes sociais. A página do Tribunal de Justiça da Paraíba dá grande destaque ao assunto, com publicações regulares de matérias acerca daquela Operação.